Christiane Russomano Freire
Não restam dúvidas que a campanha em favor da redução da maioridade penal no Brasil, que reeditou a PEC 171 após vinte cinco anos e que, tragicamente, conta com o apoio aproximado de 87% da população, se inscreve como bandeira paradigmática daquilo que, no campo penal e penitenciário, denominamos de populismo punitivo. A aprovação de tal medida poderá significar uma vitória histórica e inédita das políticas de criminalização e exclusão da juventude brasileira, instrumentalizada no incremento do encarceramento em massa, que no tocante aos seus efeitos sociais perversos, se assemelha somente à aprovação da Lei dos Crimes Hediondos nos idos dos anos 90, marco que inaugurou a adesão do Brasil ao punitivismo penal.
A instabilidade do momento político nacional, que fragiliza as instituições democráticas, assim como fomenta e fortalece no Congresso Nacional um conservadorismo que ficou latente por mais ou menos quatro mandatos presidenciais, surge como terreno fértil capaz de germinar importantes retrocessos nas esferas dos direitos coletivos e individuais. Soma-se a isto a legitimidade conferida por amplos setores da sociedade civil que, suscetíveis às campanhas de pânico incessantemente veiculadas pelos principais meios de comunicação, se transformam nos principais propagadores das respostas penais de natureza simbólicas. Ou seja, aquelas dirigidas a aplacar os medos coletivos, transmitindo a falsa sensação de segurança.
Por outro lado, não é necessário compreender profundamente os mecanismos da política econômica para estabelecer conexões entre as propostas de terceirização/precarização do trabalho que tomaram corpo nos últimos meses, recebendo amplo apoio da maioria dos partidos políticos com representação parlamentar, com a defesa da redução da maioridade penal. As novas readequações exigidas pelo contexto econômico mundial - não mais atenuado pela estabilidade e crescimento da econômica nacional, que durante as duas últimas décadas permitiu a implantação de políticas de inclusão e distribuição de renda e direitos sem causar danos substanciais às expectativas vorazes das elites nacionais - tornam a redução da idade penal,com o incontroverso incremento do aprisionamento juvenil, a outra dimensão da precarização do trabalho, da segregação territorial e da sujeição ou eliminação dos sujeitos redundantes.
Todavia, para além desses aspectos substanciais acima mencionados, existe outro elemento que, embora não tenha sido problematizado pela maioria das análises do fenômeno, ao menos àquelas a que tive acesso, me parece fundamental para a compreensão do que efetivamente está em jogo.
Trata-se do significado das Jornadas de Junho de 2013. Diferente do que muitos acreditavam, propagavam, ou na verdade desejavam, a juventude brasileira, assim como a de vários outros países não somente não estão apáticas, alienadas e apolíticas, mas ao contrário, montam um espetáculo até então nunca visto de atitude, consciência cidadã e criatividade.
Surgem trazendo novos tipos de organização social: coletivos organizados em redes que professam autonomia e diferem muito dos tradicionais e institucionalizados movimentos de juventude. A pluralidade das bandeiras é o ingrediente diferencial e também o mais interessante, uma vez que permite a auto-organização e a autonomia perante os poderes constituídos, mas, sobretudo o diálogo e o respeito pelo que é substancial para o Outro.
Nesse mosaico conectado não apenas virtualmente, mas na ação direta das ruas nas grandes cidades brasileiras encontramos desde o Movimento Pelo Passe Livre - MPL, a Marcha da Maconha, a Marcha das Vadias, a Massa Crítica, o Movimento Reaja ou Será Morto, as Mães de Maio, o Território Livre, a Frente Independente Popular, o Ocupe Estelita, o Levante Popular da Juventude, o Juntos, dentre tantos outros. As pautas envolvem questões referentes à mobilidade urbana, a ecologia, os direitos LGBT, a descriminalização das drogas, a luta contra a violência policial e as mortes da juventude das periferias, o direito e o acesso as manifestações culturais como as pichações e o Hip Hop.
Nessas vivências, a juventude brasileira se desconectou dos partidos políticos tradicionais e sindicatos, reafirmou sua desconfiança com a institucionalidade e a horizontalidade, postura que os fez rechaçar, não raras vezes, até mesmo a participação dos partidos de esquerda nas manifestações que protagonizaram. E, ainda, criou uma nova linguagem, mais criativa e menos dogmática, utilizando-se das novas tecnologias para fomentar redes conectadas e descentralizadas, tendo como pautas majoritárias questões locais, assim como algumas de crivo nacional, tais como a desmilitarização das polícias e a não criminalização dos movimentos sociais. No entanto, não possuem um programa mais amplo, com propostas para a sociedade como um todo, ou mesmo com pretensões as disputas na esfera estatal.
No entanto, o que temos é o empoderamento de uma juventude que cresceu durante as duas últimas décadas e que foi beneficiária das várias conquistas democráticas e sociais, tanto é assim que na ampla maioria das vezes possuem nível de escolaridade superior aos seus pais, bem como tem acesso a determinados bens de consumo. Sendo assim, são capazes de demonstrar claramente que não estão dispostos a fazer qualquer tipo de concessão no que se refere aos direitos, as liberdades e a parcela de democracia conquistada.
Ainda é cedo para saber a trajetória futura de tais movimentos, podemos fazer diferentes conjeturas: se em algum momento irão optar pela institucionalização e participação no jogo político eleitoral, se irão assumir as mesmas formas dos seus semelhantes na Espanha ou na Grécia, se irão dar origem a outro ou outros organismos de representação política, ou mesmo se irão manter sua autonomia como movimentos sociais, mas o que realmente importa é que nunca estiveram tão vivos, tão atentos, tão dispostos da lutar e com tanta capacidade de mobilização. E é exatamente contra essa potencialidade que assistimos tomar corpo uma poderosa reação autoritária que, embora adormecido por breve período, sempre esteve ali na espreita, uma vez que infelizmente se constitui como ingrediente substancial da tradição sócio-cultural.